Recentemente encontrei em minhas caixas de livros um livro chamado "Testemunhas da Esperança: quando o amor irrompe em situações de heroísmo e no dia a dia", do Cardeal François X. N. Van Thuan, o qual já conhecia por ter ouvido algo sobre ele em algum retiro ou formação que participei neste ano de noviciado. Contudo, não havia lido nada escrito por ele, e nem me lembrava de existência desse livro em minha biblioteca, até encontrá-lo.
Neste livro estão contidas suas alocuções à Cúria Romana por ocasião do retiro quaresmal do ano 2000. Van Thuan foi convidado pelo então Papa João Paulo II para pregar os exercícios espirituais daquele ano. E fê-lo trazendo à memória seus longos anos de prisão, e como não deixou sua fé, sua esperança e seu amor morrerem.
E já que estamos no mês da Bíblia, quero partilhar com vocês um trecho deste livro onde Cardeal fala sobre a Palavra de Deus e sua importância em nossa vida.
MINHAS PALAVRAS SÃO ESPÍRITO E VIDA: SER A PALAVRA
Quando eu estudava no seminário menor de Annin, um professor e sacerdote vietnamita fez-me entender a importância de ter sempre comigo o Evangelho. Ele havia se convertido do budismo e provinha de uma família de mandarins. Era um intelectual: levava sempre consigo a tiracolo o Novo Testamento, como se conduz um viático. Quando deixou o seminário para assumir outro encargo, deu-me como herança esse livro, o seu tesouro mais precioso.
E exemplo desse santo sacerdote, cujo nome é José Maria Thich, sempre vivo no meu coração, ajudou-me muito na prisão durante o período de isolamento. Fui para frente naquele período porque a Palavra de Deus tornara-se "lâmpada para os meus passos", "luz para o meu caminho" (Sl 119, 105).
É do conhecimento de todos que São Jerônimo e Santa Teresa do Menino Jesus levavam sempre consigo o Evangelho junto ao coração. Mas é a própria cultura de meu povo que evidencia o valor único da Sagrada Escritura. Na Ásia veneram-se muito as palavras de Confúcio e de Mêncio, o seu discípulo. As palavras deles não podem ser guardadas em qualquer lugar, mas são postas na fronte, em sinal de veneração.
A Palavra e as palavras
Quando Jesus, no momento da Transfiguração, manifestou a sua glória a Pedro, Tiago e João, da nuvem ouviu-se uma voz: "Este é meu Filho, o Eleito; ouvi-O" (Lc 9,35).
As palavras de Jesus não são como as palavras dos homens. Foi o que perceberam imediatamente as primeiras pessoas que as ouviram: "[...] porque ele as ensinava com autoridade e não como os seus escribas " (Mt 7,29).
Não é por acaso que o Evangelho desperta grande fascínio até mesmo fora do mundo cristão. Gandhi, por exemplo, escreve a este respeito:
"Quando li o Evangelho e cheguei à passagem do Sermão da montanha, comecei a perceber com profundidade o ensinamento cristão. A doutrina contida no Sermão da montanha era como um eco de algo que aprendera durante a infância, algo que parecia pertencer ao meu próprio ser e tinha a impressão de vê-la atuada na minha vida cotidiana... Abeberem-se profundamente das fontes do Sermão da montanha" (Gandhi, 1993, p. 52).
O fato é que as palavras de Jesus possuem uma dimensão e uma profundidade que os demais não têm, sejam elas de filósofos, de políticos, de poetas... As palavras de Jesus são "palavras de vida", como frequentemente são definidas no Novo Testamento. Estas contêm, exprimem e comunicam uma vida, ou melhor, a "vida eterna", a plenitude da vida.
Gosto muito do sexto capítulo do Evangelho de São João. Após a revelação do pão da vida, o caminho torna-se árduo e, a partir daquele momento, muitos dos discípulos abandonam Jesus. Então ele pergunta aos doze: "Não quereis também vós partir?" Pedro lhe responde: "Senhor, a quem iremos? Tens palavras de vida eterna" (Jo 6, 67-68).
Toda força e a fragilidade de nossa esperança dependem dessas palavras.
Palavra e Eucaristia, uma única Refeição
A Sagrada Escritura testemunha desde suas primeiras páginas que a Palavra de Deus é de uma eficácia única. "Deus disse [...] e assim se fez" (Gn 1,3.7.9.11.15.24.30). Após a queda de nossos primeiros pais, a Palavra de Deus, com a promessa da redenção, doa novamente a estes a esperança da salvação (cf. Gn 3,15). Com o chamado de Abraão, Deus forma seu povo. E plasma a história com as suas palavras: fala aos patriarcas e comunica-lhes as suas promessas, dirige-se a Moisés para liberar o seu povo da escravidão do Egito, transmite palavras da verdade por meio dos profetas, durante a espera do Messias, único Salvador.
Mas Jesus é a Palavra por excelência. Afirma a Dei Verbum (n. 4):
Jesus Cristo, portanto, Verbo feito carne, enviado como "homem aos homens" (Carta a Diogneto 7,4; Funk, I, p. 403), "fala as palavras de Deus" (Jo 3,34) e realiza a obra salvífica que o Pai lhe confiou (cf. Jo 5, 36;17,4).
Para se entender a importância da Palavra de Deus para a Igreja, é suficiente observar o comportamento bimilenar da Igreja que
sempre venerou as divinas Escrituras, da mesma forma que fez com o próprio Corpo de Cristo, já que, principalmente, na sagrada Liturgia, sem cessar toma da mesa tanto da Palavra de Deus quanto do Corpo do Cristo, o pão da vida, e o distribui aos fieis (Dei Verbum, n. 21).
Ao longo de toda a tradição cristão é constantemente evidenciado esse liame entre Palavra e Eucaristia, ambas alimento do cristão. Escreve Orígenes:
Nós bebemos o sangue de Cristo não só quando o recebemos segundo o rito dos mistérios, mas também quando recebemos as suas palavras nas quais reside a vida (PG 12, 701).
E São Jerônimo afirma: "O conhecimento das Sagradas Escrituras é um verdadeiro alimento e uma verdadeira bebida que se assumem da Palavra de Deus" (Commentarius in Ecclesiasten, III, 8, 12-13, CCL 72, 278).
[...]
Quando havia perdido tudo e estava na prisão, pensei em preparar uma espécie de manual que me consentisse viver também naquela situação a Palavra de Deus. Não dispunha nem de papel de caderno, mas a polícia me fornecia algumas folhas, nas quais eu podia escrever as respostas às inúmeras perguntas que me faziam. Então, aos poucos comecei a guardar algumas destas pequenas folhas e fiz uma minúscula agenda em que pude escrever, a cada dia, em latim, mais de trezentas frases da Sagrada Escritura que eu lembrava de cor. A Palavra de Deus, desta forma, tornou-se o meu manual cotidiano, o meu escrínio precioso do qual extraía força e alimento.
[...]
Adquirir a mentalidade de Cristo
Quando eu estava preso escrevi o seguinte:
Observa uma única regra: o Evangelho. Esta norma está acima de todas as demais. É a regra que o próprio Jesus deixou para os seus apóstolos (cf. Mt 4,19). Não é difícil nem mesmo complicada ou legalista como as outras regras. Ao contrário, é dinâmica, gentil e estimulante para o teu espírito. Um santo longe do Evangelho é um santo falso" (Van Thuan, 1992, p. 194, n. 985).
De fato, a Palavra de Deus ao penetrar em nossa vida contesta o modo de pensar e de agir humano e introduz-nos no novo estilo de vida instaurado por Cristo. Quem vive o Evangelho pode chegar a ter, a exemplo de São Paulo, "o pensamento do Senhor" (cf. 1Cor 2,16); adquire a capacidade de ler os sinais dos tempos com o mesmo olhar de Cristo e, portanto, incide com criatividade na história; experimenta a verdadeira liberdade, a alegria, a coragem inerente à coerência evangélica; encontra uma nova confiança no Pai, um relacionamento de autêntica e sincera filiação e, ao mesmo tempo, uma atitude, concreta e operante, de serviço a todos.
Em suma, o Evangelho revela-nos o sentido profundo de nossa vida, de forma que sabemos finalmente o porquê de nossa existência; os ensinamentos de Cristo dão-nos novamente esperança.
O resultado é que não somos mais nós a viver, mas é Cristo que vive em nós. É o Verbo que - por meio das palavras da Escritura - estabelece morada em nós e nos transforma nele: palavras na Palavra.
A propósito, interrogou-se Paulo VI:
Como Jesus se torna presente nas pessoas? Por meio do veículo, a comunicação da palavra transmite o pensamento divino, o Verbo, o Filho de Deus feito homem. Poderíamos afirmar que Jesus se encarna em nós quando aceitamos que a sua Palavra venha viver dentro de nós (Paulo VI, 1967, p. 936).
Fonte: NGUYEN VAN THUAN, François Xavier. Testemunhas da Esperança: quando o amor irrompe em situações de heroísmo e no dia a dia. Tradução João Batista Florentino - Vargem Grande Paulista, SP: Editora Cidade Nova, 2002.